sábado, 1 de outubro de 2011

Jorge Guerreiro - Brincando de faz-de-conta

Clique para ouvir:

BRINCANDO DE FAZ DE CONTA
Jorge Guerreiro


Vamos fazer de conta, amor?
Vamos brincar de amar?
Construir uma casinha de pedras,
Com quatro vassouras ao alto,
um plástico colorido no teto,
mesinhas, banquinhos, eu sei lá...
E na casinha de brinquedo,
uma caminha com uma boneca estática,
de olhos de vidro, fechados,
que ri, fala, chora e se cala
quando e como nós queremos...
Vamos fingir de maridos?

Eu o pai, tu a mãe
e a boneca a filha?
Faremos comidinhas com flores,
em panela de sonhos,
beberemos água por filtrar,
comeremos pétalas de rosas
e dormiremos sonhos azuis...

É tudo de mentirinha,
de faz de contra, só assim...
Não rias. Antes coloca
aquela margarida no teu cabelo.
Pega a cestinha dourada,
põe pedrinhas sob o seio
e vai ao verdureiro, à padaria,
porque eu estou na hora de...
bem, de chegar do trabalho.
Sou bancário organizado,
pago cheques de papel-jornal,
com cifrões, muitos cifrões,
no banco que não tem títulos
nem duplicatas vencidas ou a vencer.
Pago cheques com pedrinhas redondas,
mesmo a quem não conheço,
até a quem não tem conta.
Precisa? – Eu pago!
Tem demais? – Deposita!

Olha, amor: brrrre... brrrre... brrrre...

Estou chegando num Mustang azul-céu.
Chave na porta aberta,
pés na sala, aqui estou eu!
Não, não digas só "boa tarde, querido..."
Chega mais para perto. Dá-me um beijo
bem redondo, sonoro.
Depois eu te pergunto: – O que é o almoço?
Tu repondes: – Flores!...
Flores com salada de flores...
E a menina, como está?
Dormindo, comeu agora...

Esquece o aluguel, as prestações,
o vestido para a festa que vem
e senta-te ao meu lado,
coração junto, alma junta,
mãos juntas e brinquemos.
Tu serves-me pétalas vermelhas
no pratinho verde
e eu coloco em tua boca
o pólen perfumado do jasmim lilás.
Depois de três gargalhadas
e um copo de água, convencionamos: são horas de dormir.
Aí, as paredes nos faltam,
nossos pés ultrapassam as pedras,
saem do plástico, batem nas vassouras
e a casa cai...

Não fiques triste. Casa de mentirinha
reconstrói-se depressa...
E nós... nós voltaremos a fazer de conta
e a brincar de amar,
neste mundo que também é de mentirinha
e de faz de conta, mas que os homens
levam estupidamente a sério.
E em vez de flores comem vacas
e aves de bela plumagem
e inocentes peixes ridículos.
E em vez de água por filtrar
bebem pólvora em garrafas
de incríveis rótulos amarelos.
E em vez de velarem o sono
da boneca estática,
deixam os filhos crescer
como os lírios do fosso de Cagliostro.
E em vez de lhes darem mingau
de areia com açúcar-terra,
oferecem-lhes rodas de morte,
cigarros de alucinação e
um profundo aborrecimento e ódio.
Um mundo onde as casas caem
e raramente se reconstroem...
Um mundo onde o que precisa não tem
e o que tem a mais não deposita...
Onde as pedras são matrerial de construção
e as árvores matéria-prima...
E onde, para ser bom
é preciso estar morto.

GUERREIRO, Jorge. Tempo de poesia. São Paulo: Aquarius, 1978. p. 15-17.

Nenhum comentário:

Postar um comentário