domingo, 16 de outubro de 2011

Menotti Del Picchia - Juca Mulato

Clique para ouvir:

JUCA MULATO
Menotti Del Picchia

Germinal
Nuvens voam pelo ar como bandos de garças.
Artista boêmio, o sol, mescla na cordilheira pinceladas esparsas
de ouro fosco. Num mastro, apruma-se a bandeira
de São João, desfraldando o seu alvo losango.

Juca Mulato cisma. A sonolência vence-o.
Vem, na tarde que expira e na voz de um curiango,
o narcótico do ar parado, esse veneno
que há no ventre da treva e na alma do silêncio.

Um sorriso ilumina o seu rosto moreno.
No piquete relincha um poldro; um galo álacre
tatala a asa triunfal, ergue a crista de lacre,
clarina a recolher entre varas de cerdos e
mexem-se ruivos bois processionais e lerdos
e, num magote escuro, a manada se abisma

na treva.
                     Anoiteceu.
                                       Juca Mulato cisma.

II
Como se sente bem recostado no chão!
Ele é como uma pedra, é como a correnteza,
uma coisa qualquer dentro da natureza
amalgamada ao mesmo anseio, ao mesmo amplexo,
a esse desejo de viver grande e complexo
que tudo abarca numa força de coesão.

Compreende em tudo ambições novas e felizes,
tem desejo até de rebrotar raízes, deitar ramas pelo ar,
sorver, junto da planta, e sobre a mesma leiva,

o mesmo anseio de subir, a mesma seiva,
romper em brotos, florescer, frutificar!


III
"Que delícia viver! Sentir entre os protervos
renovos se escoar uma seiva alma viva,
na tenra carne a remoçar o corpo moço..."
E um prazer bestial lhe encrespa a carne e os nervos;
afla a narina; o peito arqueja; uma lasciva
onda de sangue lhe incha as veias do pescoço...

Ei-lo supino e só na noite vasta. Um cheiro
acre de feno lhe entorpece o corpo langue
                                         e, no torso trigueiro,
enroscam seus anéis serpentes de desejos
e um pubescente ansiar de abraços e de beijos
incendeia-lhe a pele e estua-lhe no sangue.
Juca Mulato cisma.
                                                        Escuta a voz em coro

dos batráquios, no açude, os gritos soluçantes
do eterno amor dos charcos.
É ágil como um poldro e forte como um touro;
no equilíbrio viril dos seus membros possantes
há audácias de coluna e elegância dos barcos.
O crescente, recurvo, a treva em brilho frange
e, na carne da noite, imerge-se e se abisma
como, num peito etíope, a ponta de uma alfange.
Juca Mulato cisma...
A natureza cisma.


IV
Aflora-lhe no imo um sonho que braceja;
estira o braço, enrija os músculos, boceja,
supino fita o céu e diz em voz submissa:
"Que tens, Juca Mulato?..." e, reboleado na erva,
sentindo esse cansaço irritante que o enerva
deixa-se, mudo e só, quebrado de preguiça.

Cansado ele? E por quê ? Não fôra essa jornada
a mesma luta, palmo a palmo, com a enxada
a suster no café as invasões da aninga?
E, como de costume, um cálice de pinga,
um cigarro de palha, uma jantinha à toa,
um olhar dirigido à filha da patroa?
Juca Mulato pensa: a vida era-lhe um nada...
Uns alqueires de chão; o cabo de uma enxada;
um cavalo pigarço; uma pinga da boa;
o cafezal verdoengo; o sol quente e inclemente...

Nessa noite, porém, parece-lhe mais quente
                                             o olhar indiferente
                                             da filha da patroa...
"Vamos, Juca Mulato, estás doido ?
Entretanto, tem a noite lunar arrepios de susto,
parece respirar a fronde de um arbusto.

O ar é como um bafo, a água corrente, um pranto.
Tudo cria uma vida espiritual violenta.
O ar morno lhe fala, o aroma suave o tenta...
"Que diabo!" Volve aos céus as pupilas, à toa,
e vê, na lua, o olhar da filha da patroa...
Olha a mata: lá está! O horizonte lho esboça,
pressente-o em cada moita, enxerga-o em cada poça
e ele vibra, e ele sonha e ele anseia, impotente,
esse olhar que passou, longínquo e indiferente!


V
Juca Mulato cisma. Olha a lua e estremece.
Dentro dele um desejo abre-se em flor e cresce
e ele pensa, ao sentir esses sonhos ignotos,
que a alma é como uma planta, os sonhos como os brotos,

vão rebentando nela e se abrindo em floradas...

Franjam de ouro, o ocidente, as chamas das queimadas,

Mal se pode conter de inquieto e satisfeito.

Adivinha que tem qualquer coisa no peito
e às promessas do amor a alma escancara ansiado
como os áureos portais de um palácio encantado!...

Mas a mágoa que ronda a alegria de perto
entra no coração sempre que o encontra aberto...

Juca Mulato sofre... Esse olhar calmo e doce
fulgiu-lhe como a luz, como a luz apagou-se.
Feliz até então, tinha a alma adormecida....
Esse olhar que o fitou, o acordou para a vida!
A luz que nele viu deu-lhe a dor que agora o assombra,
como o sol que traz a luz e, depois, deixa a sombra...


VI
E, na noite estival, arrepiadas, as plantas
tinham na negra fronde, umas roucas gargantas
bradando, sob o luar opalino, de chofre:
"Sofre, Juca Mulato, é tua sina, sofre...
Fechar ao mal de amor nossa alma adormecida
é dormir sem sonhar, é viver sem ter vida...
Ter, a um sonho de amor, o coração sujeito
é o mesmo que cravar uma faca no peito.
Esta vida é um punhal com dois gumes fatais:
não amar é sofrer; amar é sofrer mais"!


VII
E, despertando à Vida esse caboclo rude,
alma cheia de abrolhos,
notou, na imensa dor de quem se desilude
que, desse olhar que amou, fugitivo e sereno,
só lhe restara ao lábio um travo de veneno,
uma chaga no peito e lágrimas nos olhos!


PICCHIA, Menotti Del. Juca Mulato: Germinal. São Paulo: Martins Editora, 1965. p .2-32.

Nenhum comentário:

Postar um comentário